gui galembeck, rolo, campinas, 2017-2018. © gui galembeck

ROLO

uma casa com cupins. álbuns, caixas, e fotografias. anos e anos de acervo, de arquivo, com imagens e objetos que apodrecem. submersos em sonhos, de um pai e de uma vida, que hoje não existem mais.

em urgência, gui galembeck segue para a propriedade de pérsio galembeck (1947-2003), fotógrafo e pai, para resgatar os 30 anos de negativos, positivos, e claro, lembranças que ali habitam. frente à frente com as imagens de sua infância, guilherme precisa - e como estamos falando sobre fotografia - editar as heranças. o que era especial? o que era excesso?

no ato de catalogar, gui percebe que existe uma distância sutil entre o que vale para ele próprio e o que vale para o próximo. objetos pessoais, particulares, úteis, inúteis, com valor, lixo... enfim, de todas as cores e credos. o que a sua câmera vale para você? para mim, vale uma vida.

com esse insight, guilherme decide explorar a maior feira livre de são paulo: a feira do rolo. e nesta jornada, em um ambiente para lá de perigoso à metros do aeroporto de viracopos, pesquisa a relação das pessoas com o que compram, vendem, guardam e assim por diante. é dessa pesquisa que surge a série 'rolo'.

entre o apego e o afeto, com vocês, gui galembeck:

quando começou a fotografar?

tive minhas primeiras noções de laboratório preto e branco aos 8 anos de idade. meu pai era fotógrafo, então comecei realmente muito cedo. aos 13 peguei sério como assistente pois precisava de independência e dinheiro para comprar peças de skate, além de manter minha banda.

gui galembeck, rolo, campinas, 2017-2018. © gui galembeck

e por que a película?

no início dos anos 2000 migrei minha produção comercial para o digital e mantive o autoral no analógico pois sempre achei que o digital tinha pouca personalidade. o filme pra mim é muito mais que um processo divertido da moda, é algo que tem conexão direta com minhas raízes, trás lembranças e sentimentos de volta, faz com que muitas coisas façam sentido pra mim.

gui galembeck, rolo, campinas, 2017-2018. © gui galembeck

agora, vamos ao ‘rolo’. explique-nos como começaram as pesquisas para o projeto. o que despertou a sua atenção?

começou quando minha mãe me ligou dizendo que a casa dela seria vendida e pediu que eu lidasse com as coisas de meu pai que estavam estocadas lá, antes que tudo fosse colocado em uma caçamba e virasse lixo. a maior parte do arquivo fotográfico autoral dele estava lá, o que me colocou em estado de urgência. a casa estava desmoronando, infestada com traças e cupins. o que encontrei não foi apenas o arquivo fotográfico, mas uma enxurrada de objetos pessoais e particulares que me remetiam a lembranças e sentimentos profundos. eu tive que lidar com essas emoções a partir de cada item encontrado e naquele momento eu fui obrigado a me questionar o sentido da acumulação material e o que realmente teria algum valor naquela montanha de entulhos, mesmo que fosse apenas sentimental. então eu percebi que existe uma linha muito sutil, extremamente pessoal, entre o que é lixo e o que traz consigo algum significado. naquele momento surgiu a vontade de entender o assunto de maneira mais profunda. ao mesmo tempo eu sempre tive vontade de fotografar a feira do rolo mas não sabia muito bem o porque, aí foi como ligar os pontos e iniciar o projeto.

gui galembeck, rolo, campinas, 2017-2018. © gui galembeck

quantos e quais rolos você usou para fotografar o ‘rolo’?

até agora, aproximadamente 50 rolos de filme, o número continua crescendo, em sua grande maioria kodak ektar 100. usei alguns kodak portra 400 também. logo no início, fiz testes com o fuji c200 e fuji nps160, mas me encontrei e padronizei no ektar.

gui galembeck, rolo, campinas, 2017-2018. © gui galembeck

e que câmera você usou para fotografar a feira? pergunto pois, por se tratar de um comércio, e por você ser um outsider, uma câmera de filme pode ajudar neste contato, certo? o primeiro passo para compreender este cenário.

eu precisava de algo que me colocasse em um ritmo que não assustasse as pessoas. ao mesmo tempo, não existia a mínima possibilidade de chegar metralhando com uma câmera digital naquele ambiente. a feira do rolo se baseia no comércio mas nem sempre trabalha dentro da legalidade e aquela região em si é dominada pelo crime organizado. então, as pessoas vivem sob pressão e tem receio de ter alguém com uma câmera ali no meio. trabalhar no analógico permitiu que o contato fosse mais lento, que as pessoas me percebessem, tornando o ato de fotografar, algo consentido. eu uso uma fuji ga645 pro, praticamente uma point and shoot médio formato e isso me deu ao mesmo tempo uma certa praticidade, além das cores e profundidade que eu buscava no formato.

gui galembeck, rolo, campinas, 2017-2018. © gui galembeck

quais desafios você encontrou para acessar as áreas da feira, e mais do que isso, seus frequentadores? como conseguiu conquistar a confiança dos feirantes?

foi um contato bem lento, tive que vencer barreiras para além do receio com a fotografia. o fato que alguém de fora está ali com uma câmera influencia diretamente na vida das pessoas. muitas vezes fui confundindo com fiscal da prefeitura ou fotojornalista fazendo denúncia. normalmente quando isso acontece as pessoas se sentem ameaçadas e reagem te ameaçando de volta, algumas vezes fui expulso e, sinceramente, não é um lugar que dá pra arriscar a ser mal interpretado. então diversas vezes voltei para casa sem nenhuma foto, mas sempre que conseguia chegar em alguém, retribuía com uma cópia em minha próxima visita, o processo básico. não podemos entender a fotografia como uma via de mão única, não era minha intenção estar ali para tirar algo deles, muito pelo contrário, eu queria dar algo em troca e acredito que nesse ponto foi uma decisão certeira. durante o processo me aproximei bastante de algumas pessoas, presenciei recém-nascidos, que hoje estão com dois anos, crescendo ali na beira da estrada, registrei quem se sentiu a vontade e me veem e chamam de longe para fazer fotos. fiz amigos, me divirto demais indo pro rolo nem que seja pra comprar um frango caipira ou garimpar câmeras antigas.

gui galembeck, rolo, campinas, 2017-2018. © gui galembeck

e as condutas e regras do local? como funcionam?

posso responder apenas por mim mesmo. respeito sempre e muita cautela, essas são as regras.

gui galembeck, rolo, campinas, 2017-2018. © gui galembeck

como foi editar este livro?

tem sido um processo engrandecedor. contar com a presença de um editor é uma novidade para mim e percebi que é algo essencial no processo. a gente sempre acaba se apegando a algumas imagens e passando por cima de outras, é muito bom perceber como pessoas de fora fazem a leitura da narrativa e colocam gatilhos para novas idéias que você passa a entender e automaticamente engloba ou não à idéia original. é um processo muito mais extenso que eu imaginava mas também é muito gratificante criar algo que faça sentido para o mundo e não apenas para minha pessoa.

gui galembeck, rolo, campinas, 2017-2018. © gui galembeck

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conte-nos, também, sobre os desafios em desenvolver um fotolivro no brasil.

é um processo complicado como desenvolver qualquer trabalho cultural no brasil. falta formação, faltam incentivos, os custos são altíssimos e as iniciativas de suporte são insuficientes. nosso mercado de fotolivros ainda engatinha em comparação à produção mundial, mas passar por tudo isso é um processo extremamente necessário. se não metermos a cara nada vai acontecer. é sempre bom ter em quem se espelhar, porém temos que ter noção de que cada um tem seu background, suas possibilidades financeiras e seus limites. estamos em um ponto crítico, de onde acredito não ter mais volta, mas ainda longe de um panorama ideal.

gui galembeck, rolo, campinas, 2017-2018. © gui galembeck

hoje, depois de fotografar, editar, fotografar, editar, todo este processo de ir e vir, à feira, às fotografias, que reflexões surgem do projeto?

sinto que a idéia vai ganhando formas mais bem definidas ao decorrer da produção. no início, muitas vezes não sabia nem como falar sobre o projeto, como explicar ou fazer as pessoas entenderem o tema, quem diria os detalhes mais complexos. com estudo, dedicação e ajuda de pessoas mais experientes, tudo vai tomando uma forma mais apresentável e você aprende a lidar com o material que tem em mãos. nesse meio tempo as coisas mudam e faz parte do processo lidar com essas mudanças, saber dizer sim ou não para uma idéia que surge, abrir mão de velhos conceitos e principalmente de imagens queridas, que ao longo da edição perdem o sentido ou lutam contra a idéia principal. a vida é assim, um eterno processo de edição e estamos aqui para aprender.

gui galembeck, rolo, campinas, 2017-2018. © gui galembeck

e, por último, mas não menos importante. quais os planos com a fotografia para o futuro?

para os próximos 5 anos, se conseguir definir um novo tema, que seja muito simples e óbvio e que eu possa dizer, nossa, como ninguém nunca pensou nisso antes, já me dou por satisfeito! risos! enquanto isso eu vou me dedicando a divulgação e lançamento do ‘rolo’, para fazer com que ele chegue ao festivais e comunidades fotográficas. mas, principalmente, a meta é fazer com que chegue às pessoas que fizeram e fazem parte desse universo às margens da sociedade, um universo que não tem acesso à fotografia e muito menos à cultura de fotolivros. se eu conseguir lançar esse material em homenagem a eles, e de alguma maneira fazer com que eles se orgulhem de si mesmos, estarei realizado.

gui galembeck, rolo, campinas, 2017-2018. © gui galembeck

autor

Bruno Machado

fotógrafo freelancer no rio de janeiro.

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